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Enquanto os golpistas se descabelam atrás de factóides e intrigas, hoje resolvemos dar uma refrescada por aqui
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Na madrugada de sexta-feira para sábado, ao percorrermos o circuito de nossos blogs favoritos, topamos com uma postagem originalíssima de Idelber Avelar, n’
O Biscoito Fino e a Massa. O blogueiro publicou, como já fizera em outra oportunidade, foto de uma das estantes de sua biblioteca. No caso, a imagem mostrava o “departamento” reservado a livros
de e
sobre o ensaísta alemão
Walter Benjamin. No texto, Idelber fazia considerações sobre as obras de sua coleção, abrindo entre os comentaristas uma interessante troca de opiniões.
Este cloaqueiro, pouco familiarizado com o luminar da Escola de Frankfurt, não se atreveu a entrar na conversa, mas pediu ao titular d’O Biscoito permissão para surrupiar a idéia de fotografar as estantes. Com a aquiescência de Avelar, corremos até nossas atulhadas prateleiras para escolher o segmento a ser clicado. Aconteceu que, ao voltarmos nossa atenção para os livros enfileirados e sobrepostos, em meio a boizinhos de Mestre Vitalino, suvenires de viagens e isqueiros sem gás, encontramos velhos companheiros de cabeceira doutras épocas. Espana aqui, sacode ali, recuperamos da poeira os escritos de um grande mestre. Trata-se do livro “A Língua Envergonhada”, do escritor e jornalista maranhense Lago Burnett. Publicado originalmente em 1976, foi “revisto e aumentado” em 1991. Quando relíamos a nota do autor, explicando as alterações que fizera para aquela edição, surpresa! Os últimos parágrafos faziam referência a…quem?, quem??? Walter Benjamin.
Eis as últimas linhas da introdução de Burnett: O próprio Walter Benjamin entendia que se distinguia dos alemães de sua geração – ainda segundo a comentarista – “justamente pelo respeito à única e pequena regra de só utilizar o eu em cartas…”
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Assim sendo, este Cloaca News resolveu brindar seus leitores deste domingo com um finíssimo biscoito, extraído da coletânea de Lago Burnett. A crônica abaixo foi estampada pela primeira vez nas páginas do finado jornal Última Hora, em 6 de novembro de 1973.
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UM MODELO DE SIMPLICIDADE
Eu não entendia nada de heurística, mas entrei para o grupo porque tinha um amigo numismata, que gostava muito de cibernética, cultivava a filatelia e deleitava-se discutindo informática.
Não era, a rigor, um halterofilista, mas não chegava a ser também um beletrista: tinha bíceps convincentes e distúrbios contumazes, mas não prescindia de tíbia e perônio quando se deixava entibiar pelos arroubos peronistas.
Era um asceta, altruísta e megalômano, porém sem vísceras atrabiliárias. Uns o viam como bíbliófilo vulgar, apegado a alfarrábios e pergaminhos, sem nenhum erudição, entretanto. Outros o tinham na conta de mentecapto ou misantropo. Eu o via apenas como amigo.
No grupo de hipocondríacos que se reuniam no aerópago diuturnamente, na tentativa de escafeder-se da prosaica convivência humana, adejava a trêfega figura taful do meu álacre amigo. No recenseamento ele era sempre classificado na categoria dos caprinos por causa da hirsuta pêra com que escondia uma dermatite perniciosa no mento.
Fisicamente, de fato, assemelhava-se a um fauno, a quem o tênis não disfarçava os pés de bode, calosos pelo exercício insólito de palmilhar íngremes bosques no encalço de ninfas, além de nereidas no mar. Não apanhava nada, nem moeda de Cr$ 0,10 pelo chão.
Mas a vitaliciedade da pertinácia e uma hepática ojeriza intelectual à castidade tornavam-no um aborígene assaz supino, capaz de prodigalizar, com a narrativa árida mas cálida, gozos eróticos que chegavam ao limiar do orgasmo na imaginação da patuléia crédula do cenáculo, afeita a espasmos oníricos.
Comprazia-se em obtemperar o argumento dos escribas prosaicos, ao declamar este singelo soneto*:
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Tu és o quelso do pental ganírio,
saltando as rimpas do fermim calério
carpindo as taipas do furor salírio
nos rúbios calos do pijom sidério.
És o bartólio do bocal empírio
que ruge e passa no festim sitério,
em ticoteios do pártamo estírio
rompendo as gambas do hortomogenério.
Teus lindos olhos que têm barcalantes
são cameçúrias que carquejam lantes,
nas cavas chusmas de nival oblôneo.
São carmentórios de um carcê metálio,
nas duas pélias por que pulsa Obálio,
em vertimbráceas do pental Perôneo.
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Não o compreendiam os vis, os filisteus, déspotas, sobas e anacoretas, assim como os vândalos, crápulas ou capadócios, que exauriam a ciência do mestre a ponto de deixá-lo exangue, em decúbito dorsal, após a catarse metódica em que se autoflagelava.
Grande amigo de adágios obtusos, ostentava melenas artesanais, com a displicência de um energúmeno, acolitado por miríades de aedos, que exceliam em orgulhosa subserviência, na pífia astúcia de uma estulta esbórnia, em geral pérfida.
Era o corolário de toda uma pletora de plêiades bastardas, a onomatopéia polifônica da mais salutar escatologia, o epicédio de viscoso enigma na contextura universal de Zeus. Na insônia do dadaísmo, entoavam-se salmos para canonizar o ídolo astênico.
Que grande vulto era esse herói edêmico, êmulo dos catoplebas, rival de eunucos!
Privar de sua intimidade, no relicário de suas remembranças, entre cambiantes ideiais esdrúxulos, dava-me a mim, mísero mortal, a emoção sensorial da glória, que se abiscoita pela convivência. Mas meu amigo era inassimilável e resistia, incólume e impávido, na carcaça inexpugnável de uma ostensiva simplicidade, que tangia as bordas da contracultura restaqüera e malsã.
Pascácio, pábulo e pacóvio, o sábio costumava preencher os desvãos da lacuna estomacal com doses homeopáticas de uma dieta neurovegetativa. E, nessas raras oportunidades em que se permitia fazer concessões à fome, acolitado pelos sevandijas, sorvia em haustos lentos a quintessência da mediocridade para em seguida sestear na fossa.
P.S. – Desculpem os leitores a tônica deste bestialógico, mas é que não tive tempo de ser simples como o meu modelo, como diria Vieira.
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* Deste soneto, “A uma Santa”, de impressionante harmonia, construído intencionalmente na base de fonemas sem nexo, sabe-se apenas que o autor se chama Luís Lisboa e é maranhense.